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E o campo pariu um rato

Rato de Cabrera? Este micromamífero era um ilustre desconhecido. Hoje, graças a um grupo de alunos da Escola Secundária de Odemira, e da sua professora de biologia, o encantador rato do campo ganha honras de celebridade.

Texto de Sérgio Coimbra Fotografias de Nuno Correia
Ilustrações de Fernando Correia e Nuno Farinha
In National Geographic - Portugal, Dezembro de 2002

Cerca de um ano atrás passei uns dias no litoral alentejano. Num desses dias, conversava com um amigo quando ele recebeu um telefonema. Depois de desligar, disse-me a rir: "Conseguiram apanhar um rato." Tratando-se do animal que se tratava, não percebi o motivo de tanta satisfação - pensei mesmo que ele não estava a regular bem, mas não disse nada. Na tarde desse mesmo dia, outro telefonema. "Olha", voltou a dizer o meu amigo, "apanharam mais ratos. A Paula e os miúdos estão felicíssimos!" A coisa estava a ficar séria. Aliás, a minha cara devia exprimir tudo o que não podia dizer por palavras, já que ele se justificou imediatamente. Foi então que fiquei a saber que a dra. Paula Canha, uma licenciada em biologia que lecciona na Escola Secundária de Odemira, andava com meia dúzia de alunos na apanha de ratos. Claro que não eram uns ratos vulgares, daqueles de que só não fugimos quando saem do esgoto porque são difíceis de topar. Eram ratos do campo, ou melhor, ratos de Cabrera. Não, não é apenas por ter um aspecto amoroso - "tímido e curioso", como o descrevem os jovens candidatos a investigadores - que este rato é especial. O nosso amigo Microtus cabrerae é especial porque só ocorre na Península Ibérica. E, embora ninguém preveja a extinção deste micromamífero a curto prazo, também é verdade que essa maravilha criada pelo homem que é a agricultura intensiva o isola em áreas cada vez mais pequenas.

Neste Verão fomos a Bicos, uma aldeia do concelho de Odemira, visitar a famosa equipa de investigação. Chegámos à Herdade da Água Branca depois de um longo percurso em caminho de terra. Encontrámos um grupo de raparigas e rapazes e professora acampados à sombra de dois sobreiros. Eram duas da tarde e fazia tanto calor que pouca vontae havia sequer para dizer "Boa tarde". Só uma das alunas, Cláudia Matos, se mexia muito - estava em pulgas para nos mostrar os ratos.

A Cláudia não é daquelas alunas brilhantes, agarradas aos livros e fazendo contas às média, mas dêem-lhe investigação de campo para fazer e mais ninguém a agarra. Não é por acaso que a pesquisa se realiza dentro da propriedade da qual os seus pais são rendeiros, praticantes de agricultura tradicional (e, graças a isso, responsáveis sem o saber pela abundância de tantos ratinhos nesta área). Ela tem uma enorme e variada colecção de ninhos de aves da região, da carriça à cegonha, e foi ela que descobriu a coruja-das-torres (Tyto alba ), cujas regurgitações permitiram definir este local como o melhor para capturar - e estudar - o rato de Cabrera. De facto, ao contrário do que acontece noutros locais onde estas corujas habitam, as "bolas" regurgitadas continham uma percentagem invulgarmente invulgar de crânios destes ratos.

No meio de uma nuvem de pó e envoltos numa onda ardente, levou-nos ao local onde dispuseram as armadilhas, umas caixinhas metálicas que reluzem entre ervas altas. Nesta colónia, a que deram o nome de "Poço", há vários tufos densos de juncos (Scirpus holoschoenus ). É na sua base que os ratos constroem as entradas para as tocas. O espaço entre esses tufos é ocupado por erva verde, tão comprida que cai sobre ela própria. Para um leigo, nada se passa ali. Mas a Cláudia baixa-se e mostra a maravilha arquitectónica que são as redes de galerias construídas debaixo dessa erva. O chão é muito limpo e liso, como se os ratos passassem o dia a poli-lo. As paredes e tectos são feitos com as próprias ervas, e muito engenho e arte.

Na zona dos montados de sobro, é nos raros locais com alguma humidade, como este que a Cláudia me mostrava, que podemos encontrar o habitat do Microtus cabrerae . Tudo indica que ele necessita de ervas sempre verdes para se alimentar, e que estas sejam altas para se refugiar. "São muito espertos", explica a Cláudia. "Percorrem toda a área da colónia, alimentando-se sem serem avistados pelos predadores, porque andam sempre nas galerias". No pico do Verão, quando este tipo de vegetação escasseia, alguns destes ratos põem patas ao caminho e mudam-se para o leito da ribeira. Aqui, onde a água quase já não corre devido à estação seca, as zonas apresentam-se ainda muito frescas, e cheias da indispensável erva verde. Para estes animais é como ter uma casa de Inverno e outra de Verão.

O rato de Cabrera é um dos roedores menos conhecidos da Europa. Não só devido à sua distribuição restrita, mas também porque são muito difíceis de capturar. Os métodos de captura usados para os micromamíferos consistem em armadilhas com isco (maçã, noc aso deste roedor) que fecham quando o rato entra. Estudos realizados em Portugal e Espanha, mesmo quando são muito abrangentes e duram ciclos de seis meses a um ano, raramente ultrapassam uma dezena de Microtus cabrerae capturados. Esta equipa capturou mais de 60 ratos em Água Branca. Bingo!

Não surpreende que Paula Canha, a Cláudia Matos e o resto da equipa andassem tão felizes no Inverno passado. "Mudámos alguns pormenores na técnica de armadilhagem e isso contribuiu para nos tornarmos recordistas de capturas", dizem, orgulhosos, os jovens. Durante os quatro dias consecutivos d ecada acampamento, as armadilhas estavam montadas dia e noite, exigindo turnos frequentes de vigia. "Não me vou esquecer da primeira vez que demos com um Cabrera dentro da armadilha. Foi numa noite de lua cheia, o céu maior que nunca, o cheiro a terra molhada e ervas frescas, o silêncio do campo no meio do nada. Quando o João espreitou para dentro da armadilha e gritou "Cabrera! Cabrera!" deve-se ter ouvido em Lisboa. Não sei como o rato não morreu de susto", conta Paula Canha.

Sempre que havia capturas, os ratinhos eram postos a dormir com éter e examinados para determinar o tamanho, peso, sexo e estado d eactividade sexual. Pouco depois, já devidamente marcados, eram devolvidos à natureza. Com estes dados e outros, a equipa elaborou algumas conclusões interessantes, só possíveis devido ao elevado número de capturas, feitas regularmente ao longo de um ano. Por exemplo, ao contrário de estudos anteriores, que pressupunham o período reprodutivo centrado na Primavera tardia (Abril, Maio, Junho), e a uma só ninhada de 5/6 crias por fêmea, esta equipa encontrou actividade reprodutora desde o Outono até ao início de Junho, sem interrupção no Inverno, e detectou casos de três ninhadas por fêmea num só ano.

O grupo tem uma ternura especial por um casal que baptizaram como "casal do Poço". O mesmo macho e a mesma fêmea são capturados sempre na mesma zona da colónia ao longo do ano. Nesse seu território só foi possível apanhar esse casal e ratinhos muito novos, nunca outros adultos. Isto sugere que os casais são fiéis um ao outro e os juvenis devem ser expulsos da colónia quando atingem a "maioridade", uma vez que depois disso não voltam a ser recapturados, ao contrário dos progenitores.

Outra conclusão a não desprezar, que Paula Canha ilumina ao mesmo tempo que nos conduz com o dedo indicador por um mapa com pontos numerados de 1 a 28 (o número de colónias detectadas na Herdade da Água Branca): "Os nosso dados permitem-nos concluir que os ratos são capazes de fazer migrações de pelo menos 3 km à procura de melhores condições para viver." Este é um facto ainda não apurado pelo dr. San Miguel, um estudioso espanhol que se dedica a este assunto, que sugere que a s colónias, pequenas e bastante distantes umas das outras, funcionam como ilhas. As perturbações do habitat seriam, assim, fatais para os "topillos de Cabrera", como lhe chamam do lado de lá da fronteira. Os estudos genéticos não comprovam esse isolamento de colónias. San Miguel admite que é necessário um conhecimento mais completo que permita perceber a biologia desta espécie e, de um modo particular, a possibilidade de haver migrações de umas colónias para outras. Mas pelos resultados que a equipa de Odemira apresenta, parece que afinal um pequeno rato é capaz de viajar por terrenos inóspitos, como um montado de solo quase limpo onde fica exposto aos predadores e não encontra alimento algum.

Antes de haver provas desta façanha, a equipa andava preocupada com o destino dos ratos quando o agricultor lavra os terrenos onde estão as colónias. Mas depois de analisarem bem a história da Água Branca e perceberem as condições que o rato de Cabrera exige para se instalar, deixaram que tudo se passasse como sempre. É que a limpeza do terreno, feita de quatro em quatro anos para não deixar crescer o mato, é essencial para manter as áreas abertas e renovar a cobertura de ervas. Para os jovens é sempre uma visão terrível, o tractor a destruir as galerias, os ratos a saltarem por todos os lados, as garças-boeiras (Bubulcus ibis ) a devorarem quantos conseguem apanhar..

Há, como se vê, mais algumas achegas importantes para o estudo do rato de Cabrera. Acontece assim graças a uma professora e a um grupo de alunos de uma escola secundária, com poucos meios mas com toda a força de vontade. Apesar de não serem investigadores encartados, conduziram uma pesquisa meritória. "Acho que fizeram um trabalho extraordinário", diz o professor António Mira, docente de biologia da Universidade de Évora e "patrono científico" desta investigação. Assim, deste modo, pode ser que a literatura infantil que nos trouxe o conto "O Rato da Cidade e o Rato do Campo" continue a fazer parte não só do nosso imaginário como da nossa vida real.


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Link: http://www.nationalgeographic.pt/revista/1202/feature7/default.asp