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De novo marés Vivas

Texto de Nuno Crato
09/09/00 - in Expresso Revista

Com a chegada da Lua Cheia a meio da semana que vem, voltamos a ter marés vivas

Assistimos há duas semanas às marés vivas de Lua Nova, altura em que o Sol e a Lua, encontrando-se alinhados com o nosso planeta, conjugaram as suas forças para erguer mais alto as águas do mar. Na semana que vem, com a chegada da Lua Cheia que se regista na próxima quarta-feira, os três astros voltam a encontrar-se alinhados e voltam a aparecer as marés vivas.

Ao falarmos de marés, deixamos um desafio ao leitor: por que é que se registam duas marés cheias por dia? A questão não é tão simples como parece. Se a subida das águas é provocada sobretudo pela Lua, por que é que o nosso satélite, que passa apenas uma vez por dia por cima das nossas costas, não se limita a fazer subir os mares por altura da sua passagem?

A explicação das marés escapou a Galileu (1564-1642) que, vivendo perto do Mediterrâneo, um mar praticamente fechado e sem marés, estava convencido que os oceanos teriam apenas uma maré cheia por dia. Em 1616, Galileu citava o que se passava em Lisboa em apoio da sua convicção. Ao que parece, o testemunho directo de um visitante inglês corrigiu-lhe esse erro, pelo que Galileu não voltou a citar o exemplo de Lisboa. Aliás, o grande físico italiano, não conhecendo nem podendo conhecer a Lei da Atracção Gravitacional, não encarava com bons olhos a ideia de que a Lua influenciasse os mares. Julgava que tal teoria evitava a explicação por causas físicas e as substituía por influências ocultas e inexplicáveis.

Se olharmos para os diagramas ao lado, podemos entender melhor o mecanismo das marés. A Lua atrai o nosso planeta e as águas, sendo fluidas, sobem mais facilmente do que a crusta terrestre, que se desloca apenas imperceptivelmente. Mas a Lua provoca uma subida das águas tanto na face da Terra que para ela está virada como na face oposta. Em cada momento, há dois lobos salientes nos mares, que estão, é claro, muito exagerados no diagrama. Dado que o nosso planeta roda uma vez em cada 24 horas e que o nosso satélite pouco muda de posição nesse período, as águas sobem uma vez quando a Lua está sobre elas e outra vez quando esta se encontra na posição oposta. Para um observador colocado numa praia, as águas sobem quando o nosso satélite passa alto no céu. E voltam a subir quando a Lua está invisível por baixo desse observador. É por isso que há duas marés cheias por dia, as ditas preia-mar. E é por isso também que há duas marés baixas por dia, as ditas baixa-mar.

Só falta explicar a razão da existência dos dois lobos. Para a perceber foi preciso esperar pelo génio de Newton (1642-1727), que explicou o mecanismo da órbita dos astros. Se considerarmos apenas o sistema Terra-Lua, há uma atracção mútua entre os dois corpos, mas essa atracção é compensada pela sua rotação. Na realidade, não é só o nosso satélite que roda em torno de nós. Os dois astros rodam em torno de um centro de gravidade comum que, dada a muito maior massa da Terra, se encontra situado no interior do nosso planeta, não muito longe do seu centro. Em cada um dos astros, a força de atracção gravitacional actua como força centrípeta, que os mantém a rodar em conjunto. Essa força é compensada pela força centrífuga, uma manifestação da inércia que tende a afastar do centro um corpo em rotação. No conjunto, há um equilíbrio, e os astros continuam a sua órbita.

As forças de maré são forças diferenciais. O que está em causa são os diferentes equilíbrios de forças em diferentes lugares. Quando a Lua passa por cima das nossas praias, atrai mais fortemente os nossos mares e faz subir as águas. Nos nossos antípodas, é o contrário que se passa. Estando por cima de nós, a Lua está mais afastada do Pacífico e esse oceano é menos atraído. A força centrífuga continua aí a exercer-se, mas os mares mais afastados da Lua são menos atraídos e as suas águas sobem. É por isso que a Lua provoca dois lobos, um de cada lado da Terra.

As coisas, no entanto, são muito mais complexas. O movimento de rotação da Terra arrasta as águas e faz com que as marés cheias não se registem exactamente quando o nosso satélite passa pelo meridiano ou pelo antimeridiano do lugar. Há habitualmente um desfasamento de horas entre a passagem da Lua e a maré cheia.

Outro fenómeno curioso que afecta a navegação é a desigualdade das marés cheias. Habitualmente, há uma preia-mar mais elevada do que outra, porque a Lua passa a maior parte do tempo acima ou abaixo do plano equatorial terrestre. Sendo assim, os dois lobos que a Lua provoca costumam aparecer um abaixo e outro acima do equador. Para nós, que estamos a cerca de 40 graus de latitude norte, o fenómeno é bem observável. Quando o lobo que está do nosso lado se destaca no hemisfério sul, a nossa maré cheia é menos elevada. Passadas cerca de doze horas, quando o outro lobo aparece, a nossa maré cheia é mais elevada. Só quando a Lua passa pelo plano equatorial é que as marés são iguais.

Estes fenómenos foram bem percebidos por Isaac Newton, mas foi preciso outro génio da ciência, Pierre Simon, Marquês de Laplace (1749-1827), para perceber bem a dinâmica dos mares e a interacção do movimento de subida e descida das águas. O modelo matemático deste cientista francês assumia que os oceanos cobriam todo o planeta, mas tinha em conta a deslocação das águas de uns locais para outros e a sua interacção.

Estes modelos matemáticos, se bem que explicassem o movimento geral das águas, não conseguiam explicar as diferenças de comportamento de uns mares para outros, pois os movimentos dos oceanos são muito complexos, dado que as águas esbarram com os continentes, que impedem o seu fluxo livre. Foi só em fins do século passado que o cientista inglês William Thomson (1824-1907), conhecido como Lorde Kelvin, elaborou um método mais rigoroso de previsão prática das marés. Esse método tinha em consideração todos os movimentos complexos dos astros e adaptava-se ainda à especificidade de cada lugar.

Kelvin tinha lido a "Théorie analytique de la chaleur" de Jean Baptiste Fourier (1768-1830) e tinha-a considerado um "poema matemático". Nessa obra, publicada em 1822, o matemático francês tinha espantado o mundo ao mostrar que praticamente qualquer função podia ser representada como uma soma de senos e cosenos. Na prática, é como se qualquer gráfico de função pudesse ser obtido como uma soma de ondas periódicas de diferentes comprimentos e amplitudes. O que era preciso era encontrar as ondas certas. Kelvin reparou que a influência nas marés dos movimentos complexos do sistema Sol-Terra-Lua era equivalente à soma de influências de vários satélites fictícios. A cada desses satélites fez corresponder a onda certa, isto é, a sua influência nas marés. Acrescentando ondas que representassem não os satélites fictícios mas as peculiaridades de cada porto, poder-se-ia obter uma grande precisão.

O método de Kelvin constituiu um exemplo de análise de Fourier, também chamada análise harmónica, e que ainda hoje é utilizado na previsão das marés. Foi um grande sucesso da matemática aplicada, mas o estudo científico do movimento dos oceanos está longe de se encontrar terminado.