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Poluição Luminosa



Texto de Nuno Crato
15 de Junho de 2002 - in Expresso Revista

Por vezes, parece que os responsáveis pela iluminação pública têm medo do escuro e estão apostados em destruir o céu. Mas este é um mal remediável. Com inteligência e boa vontade, pode iluminar-se melhor as ruas, poupar recursos e não estragar o firmamento.

Há muitos jovens citadinos que nunca viram mais que meia dúzia de estrelas. Para esses jovens, o Mundo é mais pobre. Não fazem ideia do que é o céu estrelado. Não podem perceber o que são constelações, nem como se identifica a estrela polar. Não conseguem perceber como os antigos detectaram a existência de planetas e o que são os signos do Zodíaco.

Para esses jovens, e para muitos outros menos jovens, não é só o céu que é mais pobre. Para eles, há muitas referências culturais que não fazem sentido. Quando lêem "Os Lusíadas", não podem perceber como se vê "de Cassiopeia a fermosura/ E do Orionte o gesto turbulento" ou a surpresa que é ver "as Ursas banharem-se nas águas". Quando lêem Aquilino, não podem imaginar o que sejam as "Três Marias". Quando ouvem falar de "perder o norte", não podem compreender que isso tenha algo a ver com as estrelas. Quando ouvem dizer que "subaru" é a designação japonesa das "Plêiades", essa curiosidade também nada lhes diz, porque não poderão ver esse grupo de estrelas.

Perder o contacto com o céu é perder o contacto com a Natureza e com uma herança cultural que tem muitos milhares de anos. Em grande parte, trata-se de um facto inevitável, tal como é inevitável na cidade deixar de ouvir o despertar dos galos ou desconhecer o ciclo das colheitas. Mas nem todas as percas são irremediáveis e não se deve aceitar que o progresso nos afaste cegamente da Natureza.

A culpa da perca de contacto com o céu reside essencialmente na iluminação artificial que, nas grandes cidades, ofusca por completo quase todas as estrelas. Talvez surpreendentemente, quem mais sofre com isso não são os astrónomos, mas sim os citadinos e o bolso dos contribuintes.

Os astrónomos são inimigos da poluição luminosa, como é natural. No entanto, aprenderam a lidar com o problema. Construíram observatórios em locais ermos e elevados, afastados das luzes das cidades e com condições de observação quase ideais. Construíram mesmo telescópios que não estão sobre a Terra e que, por isso, nem sequer sofrem com a atmosfera. O mais célebre destes é o telescópio espacial Hubble, mas há outros sistemas de observação situados em satélites. Os astrónomos portugueses, por exemplo, efectuam muitas observações fora do país, em observatórios internacionais com condições privilegiadas. Deslocam-se ao Chile, ao Observatório Europeu do Sul, a Tenerife e aos radiotelescópios de Porto Rico ou da Austrália. Por vezes nem precisam de se deslocar, pois recolhem os dados por sistemas remotos, pela Internet e via satélite. Durante todo o século XX a astronomia observacional deslocou-se da vizinhança dos antigos centros urbanos para locais especialmente adaptados à observação.

O mesmo não se passa com os astrónomos amadores, que realizam as suas observações em casa, num quintal ou em descampados onde se deslocam para o efeito. Esses estão constantemente a fugir das luzes da cidade e a tentar contornar os problemas que a poluição luminosa lhes cria. É uma luta constante, pois parece que as autarquias e os serviços públicos têm medo do escuro e estão sempre à procura de mais locais para instalarem candeeiros e holofotes. Há alguns anos, podia-se ir para a praia, à noite. Hoje, muitas praias estão iluminadas por holofotes. A continuar esta febre, será preciso passar a conduzir dezenas de quilómetros só para poder vislumbrar meia dúzia de estrelas. Mas os astrónomos amadores, precisamente porque têm amor às observações do céu, acabam por conseguir contornar estes problemas. Usam protecções de luz e conseguem reduzir os efeitos da iluminação artificial usando filtros nos seus telescópios. Deslocam-se a sítios isolados, frequentemente no Alentejo, onde as condições de observação são melhores. Muitas vezes, juntam-se em acampamentos, as chamadas astrofestas, para partilharem o céu escuro em segurança. Este ano realizar-se-á nos dias 17 e 18 de Agosto, em Nisa, mais uma Astrofesta nacional, aberta a todos os interessados.

Quem acaba por ser mais prejudicado com a poluição luminosa é o cidadão. Por um lado, porque perde contacto com o firmamento; por outro, porque são os seus impostos que pagam o desperdício de luz. Por todas estas razões, em 1988, nos Estados Unidos, um grupo de astrónomos amadores e cidadãos indiferenciados decidiram enfrentar o problema e constituíram uma associação internacional para combater a poluição luminosa - a IDA, International Dark-Sky Association. Este grupo tem actualmente cerca de dez mil membros, espalhados por muitos países.

À primeira vista, pode parecer uma batalha inglória. Mas será que a poluição luminosa é inevitável? Nem toda, responde a IDA.

O que é, afinal, a poluição luminosa? Em primeiro lugar, é a iluminação indiscriminada de todas as áreas da cidade por candeeiros que se interpõem entre os transeuntes e o céu. A iluminação é necessária, sobretudo por razões de conforto e segurança. Mas será mesmo necessário que todos os locais estejam intensamente iluminados? Junto ao rio Tejo, por exemplo, não bastaria uma iluminação superficial, com candeeiros que incidissem rasteiramente sobre o solo e deixassem ao transeunte algumas zonas do céu para onde pudesse olhar sem ser ofuscado pelos candeeiros?

O ofuscamento directo pelos candeeiros que espalham a luz em todas as direcções é um dos grandes defeitos do sistema de iluminação. Os astrónomos amadores que se preocupam com o problema têm conseguido convencer os responsáveis a proteger alguns candeeiros, de forma a estes apontarem a luz apenas para o solo, onde ela pode ser útil. Mas essas são situações localizadas e não é isso que habitualmente acontece.

Há boa, má e péssima iluminação pública. Há candeeiros que apontam para o solo e concentram a luz onde ela é necessária. Na maioria, contudo, apesar de apontarem para baixo, deixam escapar grande parte da luz para cima. E há ainda os globos completamente irracionais, que espalham a luz em todas as direcções menos para baixo, pois o sistema de suporte não permite que as lâmpadas iluminem directamente o que seria mais necessário. Calcula-se que, numa cidade, a energia global perdida por estes sistemas se situe entre os 20% e os 40%. Quer isto dizer que os contribuintes estão a pagar para se iluminar o céu...

A iluminação dos monumentos é outra fonte de problemas. Não é necessário nem racional que tenham luz durante toda a noite, nem tem qualquer sentido iluminá-los de baixo para cima, fazendo com que a luz se reflicta para o espaço.

A luz que se envia para a atmosfera é responsável por uma poluição luminosa adicional. Ela reflecte-se nas nuvens, em gotículas de água e poeiras em suspensão e cria nas camadas atmosféricas uma barreira à visibilidade das estrelas. A luminosidade que se vê ao longe sobre as cidades torna-se um obstáculo à observação do firmamento. E trata-se de um obstáculo criado, em grande parte, pelo esbanjamento. A poluição luminosa é simultaneamente um desperdício dos recursos públicos, uma barreira à Natureza e um ataque à nossa cultura. Se não lhe pusermos um travão, dentro em breve haverá jovens citadinos que nunca viram uma estrela e que julgarão que as estrelas do céu têm mesmo cinco pontas.

Para saber mais

O problema da poluição luminosa tem sido há muito discutido pelos astrónomos, tanto profissionais como amadores. "Observar o Céu Profundo", de Guilherme de Almeida e Pedro Ré, dedica uma secção ao problema e desenvolve técnicas que permitem contornar parcialmente as dificuldades de observação. "Light Pollution" de Bob Mizon é um livro totalmente dedicado ao tema da poluição luminosa, acabado de sair sob a chancela da Springer-Verlag inglesa. Aí se explicam em pormenor os diversos processos de iluminação, as estratégias para uma iluminação pública eficaz, racional e pouco poluente, assim como a evolução do debate público e da legislação em diversos países. Os interessados podem ainda consultar o sítio Internet da International Dark-Sky Association em www.darksky.org e o do Instituto Italiano da Ciência e Técnica sobre Poluição Luminosa em www.lightpollution.it/dmsp