Miguel de Magalhães Ramalho, Geólogo Professor da Faculdade de Ciências de Lisboa
Público, 13 de Maio de 2000
Quando em 1948, foi criada a Liga para a Protecção da Natureza (LPN) eram muito poucos aqueles que, em Portugal, sabiam o significado de Ambiente e da importância, para a espécie humana, da preservação dos valores naturais. Nos tempos seguintes, à medida que a LPN tomava posição contra os atentados que se iam cometendo, a reacção dos responsáveis ou dos que detinham interesses económicos, não tardou em surgir. Infelizmente, essa reacção foi sempre feita da maneira mais primária, com acusações do tipo "são uns líricos, amigos dos passarinhos que prezam mais os bichos que as pessoas" ou "são contra o progresso e querem que voltemos ao período das cavernas". Quando se discutia a importância das áreas protegidas era certo e sabido que surgia a acusação de se quererem criar "reservas de índios para as populações".
Estas frases e outras do mesmo quilate, foram-se repetindo por sucessivas gerações de ignorantes. O que é incrível é que passados tantos anos, aquelas acusações persistam nos dias de hoje, quais "fósseis vivos", que se mantiveram alimentados pela falta de conhecimento e cegos ao que a realidade vem demonstrando no mundo e no nosso território.
Mas há que fazer justiça à "inovação", introduzida nestes últimos tempos, com o conceito de fundamentalismo ambiental. É vulgar ouvirem-se responsáveis afirmar "eu até sou ambientalista, mas não fundamentalista", ou então "eu sou pela Ecologia, mas sem fundamentalismos". Obviamente que esta é a melhor forma de serem politicamente correctos, aparentando uma benévola compreensão pelos problemas ambientais mas na prática, manterem os seus interesses e pontos de vista. Num debate no auge do caso da ponte Vasco da Gama, até se chegou a ouvir o Engº. Ferreira do Amaral afirmar que se considerava um ecologista porque, quando era novo, gostava de se passear nas margens do Tejo.
Hoje, as questões ambientais impuseram-se à opinião pública, pelas consequências desastrosas da acção humana e preocupam toda a gente. Talvez por isso qualquer um se julga habilitado a emitir opiniões sobre questões ambientais, até as mais complexas, mesmo quando não tem qualquer preparação científica ou técnica para o fazer. A questão torna-se particularmente grave quando os responsáveis políticos, da administração central ou local, assumem essa postura, normalmente acompanhada de arrogância, que até rima com ignorância.
Tenho seguido com a maior atenção as diversas intervenções públicas das associações nacionais de defesa do ambiente e embora os seus pontos de vista nem sempre sejam satisfatoriamente apresentados pelos média, não tenho encontrado o tal fundamentalismo de que tantas vezes são acusados. O meu único reparo, aliás, é que essas associações deviam ser ainda mais combativas.
Com o passar do tempo tem-se verificado que, afinal, essa associações tinham razão, como aliás vem reconhecendo o actual ministro do Ambiente, que tem tido até agora, uma actuação coerente com os objectivos do seu Ministério.
Em minha opinião, os verdadeiros e "ferozes" fundamentalistas deste processo estão nas empresas imobiliárias, nalgumas autarquias e organismos ligados às obras públicas, nomeadamente em diversos departamentos oficiais que têm intervenção no território. No nosso país, é o betão que faz ganhar votos e muito dinheiro e são esses fundamentalistas que estão a vandalizar o nosso país à custa dos interesses colectivos dos cidadãos e a comprometer a nossa qualidade de vida.
Duvidam? Então o que dizer da construção desenfreada no Algarve, em Cascais, Sintra e nos outros concelhos da Grande Lisboa, do Grande Porto ou nos subúrbios da maior parte das cidades portuguesas e dos resultados desastrosos a que isso tem levado? Que dizer dos PDM aprovados que, todos juntos, prevêem casas para 30 milhões de pessoas, ou da maciça ocupação do litoral, da Reserva Ecológica Nacional, da Reserva Agrícola Nacional, das Áreas Protegidas, e dos leitos de cheia, um país onde qualquer zona verde não é mais que uma área reservada para potencial construção? Será este comportamento terceiro-mundista admissível num país da União Europeia? Não será realmente possível, em Portugal, construir com bom-senso e seguindo regras?
Perante a passividade e mesmo cumplicidade das entidades responsáveis face a esta situação, que se agrava de dia para dia e que é profundamente lesiva ao interesse colectivo da nossa população, é altura de dizer basta, e têm sido aquelas associações a fazê-lo de forma persistente.
Fazendo uma avaliação rápida, julgo que, aquelas associações não terão contestado até hoje mais do que dois por cento das obras que se fizeram. É um valor ínfimo perante a vastidão de intervenções mal projectadas, ou erradamente localizadas ou, muito simplesmente, inúteis. É urgente fazer-se a avaliação deste desperdício, com o qual alguns têm vindo a lucrar enormemente à custa do dinheiro dos contribuintes e dos prejuízos ambientais e sociais que recaem sobre toda a população.
Um outro aspecto que me choca profundamente é a falta de sensibilidade dos projectistas daquelas obras, não só na escolha de localização, como nas opções técnicas, que, normalmente, não consideram as soluções ambientalmente mais aceitáveis. Há, certamente, aqui carências graves na formação desses técnicos atribuíveis às respectivas Universidades de que muitos docentes, pelos vistos, mantêm a mentalidade e a filosofia de intervenção dos anos 50.
Tenho vindo a participar, há mais de 30 anos, na actividade da LPN e hoje é com satisfação que constato que sempre defendemos princípios, pontos de vista e soluções correctos para as questões ambientais e a prova disso é que, mais cedo ou mais tarde, os acontecimentos vieram-nos dar razão. Infelizmente, grande parte desses erros já não pode ser corrigido.
A explicação disso é, aliás, muito simples. As posições da LPN foram sempre independentes de quaisquer interesses partidários ou privados, baseadas no conhecimento científico e apoiadas na opinião de especialistas. Em questões ambientais (e noutras...) julgo que é a única forma correcta de actuar.
A Humanidade em geral e a população portuguesa, em particular, têm uma grande dívida de gratidão para com as Associações de Defesa do Ambiente, que, com enorme generosidade, têm pugnado pela qualidade de vida e pelo futuro da actual e das próximas gerações.
No limiar do século XXI, já com a experiência das consequências dos múltiplos atentados ambientais, não podemos continuar a tolerar que a ignorância e os interesses privados injustificados continuem a prejudicar o futuro de todos nós.