Texto de Filomena Naves
Diário de Notícias, 27 de Setembro de 2000
São arrastadas ou desorientam-se. São aves planadoras a centenas de quilómetros de Gibraltar, para onde terão que voar
Rumam ao sul e chegam perdidas, arrastadas por ventos fortes de leste, ou pela desorientação. Para muitas, esta é a primeira travessia intercontinental e, talvez por inexperiência, estão a mais de 600 quilómetros da rota certa. São grandes rapinas, de asas tranquilas, negras e brancas ou castanhas muito escuras. Abutres e águias, mas também cegonhas, que procuram o estreito de Gibraltar, porta de saída para África, onde vão invernar, mas acabam por desembocar em Sagres.
Planam em círculos largos, em altitude, sobre o último cabo de terra a ocidente, mas não se fazem ao mar. Morreriam se se lançassem na travessia a partir dali, onde o oceano é largo e não se avista terra. Resta-lhes reencontrar o caminho certo, ao longo da costa, até Gibraltar. Daí, com o continente africano no horizonte, passarão a salvo sobre o mar.
Todos os anos, por esta altura, os céus sobre Sagres e o cabo de São Vicente povoam-se destas aves, que estão de passagem. Vêm do Norte e do Centro da Europa e de várias regiões do País. Demandam o Inverno africano, quente e acolhedor, e chegou a pensar-se que Sagres faria parte da rota destas grandes planadoras. Não é assim.
Ao contrário dos pássaros pequenos, como as cotovias, as toutinegras ou os gaviões da Europa, que percorrem grandes distâncias confiando apenas nos seus próprios músculos e batimentos de asas, as grandes planadoras utilizam a boleia dos ventos e as correntes de ar ascendentes para se deslocarem a grandes distâncias em segurança.
Em contacto com a superfície terrestre exposta ao sol, o ar frio aquece, torna-se mais leve e ascende, formando as tais correntes de ar quente. Sobre o mar o fenómeno é muito menos intenso, o que exige mais esforço às aves. Por uma questão de economia (e sobrevivência), a travessia para África tem que ser feita onde o mar seja menos extenso.
Para as planadoras da Europa do Norte e Central e da Penínula Ibérica o corredor directo é o estreito de Gibraltar. As aves migradoras que nidificam na Europa do Leste voam para Invernos mais quentes atravessando o estreito do Bósforo, na Turquia.
Mesmo assim, há sempre um grande número de planadoras que por esta altura "aterra" em Sagres. "Cerca de mil a duas mil em cada Outono, o que significa pouco menos de dez por cento de todas as que utilizam Gibraltar para fazerem a travessia", explica o biólogo Ricardo Tomé. Apesar da sua inexperiência, sabem que não podem passar ali. Talvez porque não se avista terra do outro lado.
O mesmo já não sucede com os pássaros pequenos, que acorrem aos milhares a Sagres nesta altura do ano. Chegam, pernoitam para decansar e fazem-se ao mar no meio da uma estridente algazarra. Com a anilhagem sistemática das espécies de pequeno porte, a campanha deste ano pretende recolher dados para estudar a sua rota migratória. "Mas há muito mais informação que se pode recolher a partir daqui", diz Ricardo Tomé, sublinhando que "o que hoje sabemos das rotas das aves é uma herança de muitos anos de anilhagens".
De resto, esta prática pode permitir descobrir coisas novas, como a longevidade das diferentes espécies. Mas são necessários anos de trabalho continuado.
Outro efeito, este indirecto, é o da sensibilização ambiental que estas acções produzem, numa região cuja riqueza natural é quase única na Europa. Por isso a Fundação Oceanis, parceira da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Aves na organização desta campanha, promove paralelamente visitas guiadas diárias, para grupos de alunos das escolas secundárias e do ensino básico.
"Levamo-los aos postos de vigia, mostramos-lhes o nosso trabalho e explicamos a importância destas observações", conta a bióloga Magda Costa, que é a responsável pelo departamento de educação ambiental daquela fundação algarvia. No final, a campanha dará origem a um relatório. E no próximo Outono há mais.