Por Ana Fernandes
Segunda-feira, 2 de Dezembro de 2002 - in P˛blico
Projectos violam regras do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina ao abrigo dos direitos adquiridos mas vários juristas consideram que a renovação dos alvarás deveria obedecer às novas figuras do ordenamento
As intenções de construção para o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV) acrescentariam cerca de 25 mil camas à zona. Mas se se cumprissem as regras desta área protegida, este número seria reduzido para pouco mais de nove mil. O problema são os direitos adquiridos, assentes em alvarás conseguidos antes da criação do Parque. Mas juristas contactados pelo PÚBLICO argumentam que a situação poderia ser corrigida sem indemnizações astronómicas.
Chamam-lhe o último reduto, o derradeiro representante de uma natureza ainda em estado selvagem na costa portuguesa. Para João Silva Costa, o actual presidente do Instituto da Conservação da Natureza, o Sudoeste é mesmo "a jóia da coroa". Mas para os ambientalistas, os seus diamantes estão a ser roubados à luz do dia: "A natureza viva e a paisagem rara que fazem da costa um dos mais belos sítios da Europa podem, a curto prazo, ser substituídas por monótonas manchas de betão", diz a Almargem - Associação de Defesa do Património Ambiental e Cultural do Algarve.
Sobre esta faixa do litoral, incidem vários estatutos de protecção e diversos documentos administrativos. Além de ser parque natural, está também incluída na lista nacional de sítios para a Rede Natura 2000 - que tem limites mais alargados que a área do parque. Em termos de planos, nesta zona aplicam-se os planos regionais de ordenamento do território do Litoral Alentejano e do Algarve que, no entanto, remetem as regras sobre a construção para o Plano de Ordenamento do PNSACV. Acrescem ainda os planos directores municipais dos concelhos abrangidos - Sines, Odemira, Aljezur e Vila do Bispo.
O documento crucial é a carta de gestão do Plano de Ordenamento do parque, onde se estabelecem os diferentes usos do solo - natural, agrícola, turístico e urbano - e os índices de construção permitidos. Estes índices variam conforme o uso do solo e estabelecem qual a área que pode ser ocupada pela construção ou o número de habitantes que pode ter conforme a área total do terreno. De uma forma geral, permitem que, em cada hectare, se criem camas para 6 habitantes, sensivelmente.
É também nesta carta que estão previstos os núcleos para desenvolvimento turístico, que em grande parte coincidem com projectos que já tinham sido aprovados antes da criação da área protegida. O problema é que alguns destes projectos, que estiveram parados durante anos, estão agora a avançar. Com o argumento dos direitos adquiridos, violam os limites estabelecidos no Plano de Ordenamento do parque para a construção, propondo-se edificar o que foi aprovado há décadas atrás.
"Os índices estabelecidos só se aplicam quando não há loteamento aprovado e, existindo esta aprovação, só se podem contrariar as expectativas do promotor pagando grandes indemnizações", considera João Nunes, director do PNSACV. "Não podemos apagar o passado", considera, por seu lado, o secretário de Estado adjunto e do Ordenamento do Território, José Mário Ferreira de Almeida.
Afastando o cenário das indemnizações, face ao problemas orçamentais que o país atravessa, o governante considera que o único caminho possível "é fazer convergir as pretensões dos promotores para o interesse público". Como? "Há usos compatíveis - que incluem alguns empreendimentos turísticos - com o estatuto de protecção, pois este Governo não concebe as áreas protegidas como reservas integrais pois estas têm de ser áreas vividas de um forma compatível com o que se pretende salvaguardar".
A dúvida reside, precisamente, na compatibilidade de alguns projectos com os valores naturais existentes na área. É que alguns dos empreendimentos situam-se em zonas ambientalmente sensíveis, "nomeadamente junto de arribas, linhas de água e zonas húmidas ou em cima de áreas com importantes valores florísticos, como é o caso da Reserva Biogenética de Sagres", defendem os ambientalistas da Almargem.
Além disso, os projectos foram aprovados num outro quadro institucional, num outro tempo. Hoje, com a actual legislação, as actuais preocupações ambientais e os actuais compromissos comunitários, estes empreendimentos dificilmente teriam cabimento.
É com base neste argumento que alguns juristas contactados pelo PÚBLICO consideram que seria possível discutir em tribunal estes direitos adquiridos, mais que não fosse para reduzir o montante da indemnização a atribuir ao promotor caso o Estado considerasse que o projecto se revela incompatível com os valores naturais a preservar.
"Os direitos de construção não podem ser ilimitados", considera Ana Cristina Figueiredo. Para esta jurista, o ordenamento é dinâmico e os interesses aprovados têm de ser compatibilizados com as novas concepções jurídicas.
José Sá Fernandes vai mais longe: "as pessoas têm de ter prazos para iniciar os seus projectos, se não o fizerem, os alvarás devem caducar". A maioria dos alvarás data da década de 80, e há casos da década de 70. Mas as câmaras podem revalidá-los. "As emissões das novas licenças têm de ser feitas à luz do ordenamento em vigor", considera este advogado.
Além disso, lembram os ambientalistas da Almargem, "há legislação em vigor, mais concretamente o Dec. Lei 555/99, que atribui poderes aos presidentes das câmaras para que, aquando da revalidação de alvarás por parte dos proprietários, as autarquias possam impor alterações nos projectos para que fiquem em conformidade com instrumentos de ordenamento do território, algo que nunca assistimos".
Segundo Luís Brás, desta associação, "também é de estranhar, que aquando da renovação de alvarás, já com a existência de novas figuras de ordenamento em vigor, esse procedimento não seja comunicado à tutela com maior poder administrativo, neste caso, ao Parque". Para Sá Fernandes, esta é uma situação irregular. "Os projectos que têm licenças passadas depois das novas normas de ordenamento sem que o Parque tenha sido consultado são ilegais."
Mesmo que já existam infra-estruturas? "Sim, considero que se o projecto não avançou, as licenças têm de obedecer as critérios do Plano de Ordenamento", defende Sá Fernandes.
Sob este ponto de vista, muitos dos projectos não estão legais, pois as obras são recentes embora os alvarás sejam antigos. Mas para João Nunes, director do Parque, os "novos índices só se aplicam quando não há loteamento e infra-estruturas, caso contrário terá que haver uma indemnização".
As câmaras têm a mesma leitura: "Autorizamos contruções onde já há infra-estruturas", defende Manuel Marreiros, presidente da Câmara Municipal de Aljezur há quatro mandatos.
Face a esta alegada impossibilidade de alterar os direitos adquiridos, resta uma pergunta: que sentido tem aprovar uma lei que já se sabe que será desrespeitada ? Ou seja, sabendo-se quais os compromissos existentes com os promotores da zona, qual a razão de se aprovar, em 1999, uma carta de gestão cujos limites de construção estão, à partida, desrespeitados, sem sequer se ter tentado compatibilizar os interesses dos promotores com estas novas regras?