fechar janela

Não pagamos!

LUÍSA SCHMIDT, Expresso, Revista, 5 Fevereiro de 2000

Sobre a Costa de Portugal fizeram-se - e fazem-se - os piores erros ambientais e de ordenamento do território. Para os corrigir gastam-se milhões de contos. Até quando?

Vagueira: há cerca de dez anos autorizou-se uma vasta expansão urbana mesmo em cima do litoral. Desde então o Estado - nós - já teve de gastar uma fortuna para construir estruturas de protecção da zona costeira só para salvar os prédios. Todavia, o próprio paredão e esporões construídos revelaram-se ineficazes na fixação de areias. Só em Outubro de 1999, a Vagueira assistiu a um avanço de mais de 10 metros do mar sobre a linha de costa. Resultado: o nível dos prédios está actualmente abaixo do nível do mar.

Mesmo assim, a saga da expansão urbana não parou. Continua a construção de prédios nas mesmas condições insustentáveis. A autarquia, (que, convém não esquecer, também é Estado), depois de ter proporcionado esta desgraça, prepara-se para fazer desembolsar à Administração Central novas fortunas para mais obras inúteis contra a erosão costeira que os prédios vêm agravar.

Este é apenas um exemplo do que tem sucedido sistematicamente no litoral do país. Veja-se, mais a norte, o caso escandaloso de Ofir onde se têm gasto muitos milhares de contos do erário público em esporões para segurar 3 monos de betão que já têm as fundações à vista e que reclamam mais um milhão para obras que os aguentem... E veja-se, mais a sul, a apinhada zona costeira do concelho de Torres Vedras, toda ela de alto risco, num contínuo de betão entre a Praia de Amanhã e Santa Cruz. Veja-se, logo a seguir, a Ericeira, onde as urbanizações empoleiradas nas arribas argilosas vão exigindo obras de consolidação e, mesmo assim, surgem novas pretensões desenfreadas para tapar todos os espacinhos sobrantes... Veja-se, por fim, as al(g)arvidades que se fizeram e continuam a fazer ao longo do Algarve.

É que não se pense que os erros cessaram. Por incrível que pareça, não só estão vários edifícios actualmente em construção, como continua a corrida aos licenciamentos.

A quantidade de autorizações inaceitáveis para construir no litoral com o conluio empenhado de muitas autarquias, continua hoje a ver o número de pedidos a aumentar e quase sempre a chegar ao ponto do célebre "direito adquirido". O tal que, uma vez adquirido, produz o efeito de um autêntico assalto à mão armada sobre o bolso de todos os contribuintes. O Ministério do Ambiente continuará a despender milhões de contos para tentar suster inutilmente o processo de erosão do litoral português em benefício daqueles que mais contribuíram para o degradar. Não será isto chantagem?? Não pagamos!! Lembra o provérbio: "Quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão..."

Os litorais, esses espaços geográficos fascinantes onde se afrontam mares e continentes, são geralmente lugares extremos da vida natural intensa e movimentada, com todas as consequências que daí decorrem. São lugares instáveis por definição e são lugares sobre os quais todo o saber científico e tecnológico das engenharias não alcança poderes tão garantidos como isso. É que a força dos elementos em presença é enorme. Estamos perante o mar, a terra e o ar. A longo e até a médio prazo, é difícil uma obra costeira garantir absolutamente a sua eficácia.

No País de Gales, por exemplo, lembra Alveirinho Dias, professor de Geologia da Universidade do Algarve, realizaram-se durante anos obras de betonização para consolidar arribas que se estavam a desmoronar aos poucos, à semelhança daquelas que se têm feito em Albufeira, Ericeira, Tamariz, etc. Contudo, um temporal mais forte acabou por fazer cair toda a face das arribas em bloco numa espessura de cinco metros.

Mesmo algumas medidas correctivas relativamente recorrentes - esporões, enrocamentos, etc. - resolvem os problemas locais apenas temporariamente, entretanto acabam por agravar os mesmos problemas e até criar outros mais longe, o que em Portugal significa sempre mais a sul.

Como nota Soares de Carvalho, professor jubilado da Universidade do Minho e presidente da Eurocoast: "Os enrocamentos defendem os imóveis mas como aumentam a agitação das águas do mar quando neles embatem, provocam o emagrecimento e desaparecimento das praias na sua frente."

No litoral tudo está interligado. Basta ver a erosão que os esporões de Ofir provocaram em Pedrinhas, onde o Instituto da Água (INAG) acabou por ter de indemnizar o proprietário de uma residência secundária que ficara em situação de risco. Ou o modo como a Marina de Vila Moura gerou um recuo das areias e arribas em Vale de Lobo, que têm sido repostas à custa de dinheiros públicos... Até as pesadas obras de defesa da Vagueira que, por enquanto, a salvam da invasão marítima, irão, segundo os especialistas, abrir novas frentes de penetração marítima, galgando as terras um pouco mais abaixo.

Isto para além dos conhecidos efeitos da construção de portos. Sines tirou a areia a S. Torpes; a expansão do porto de Setúbal afectará Tróia; os famigerados molhes do Douro acelerarão a erosão até à barra de Aveiro.

O litoral português é pois extensíssimo e vulnerável e, nalgumas zonas, de extrema fragilidade - dunas e areais por vezes entrecortados por falésias facilmente desagregáveis.

Além do mais, toda a costa portuguesa, à excepção da Algarvia, é das mais "energeticamente fustigadas pela ondulação atlântica", diz Alveirinho Dias, acrescentando que "a nossa plataforma continental não é extensa".

À vulnerabilidade natural da nossa costa, acresce toda a acção humana que a tem ajudado a fragilizar: as grandes barragens, sobretudo dos rios internacionais, que retêm areias e sedimentos; o negócio chorudo e obscuro da extracção de areias, o qual tem contribuído escandalosamente para o aumento da erosão; o próprio negócio da construção de esporões que também alimenta grandes interesses; e depois todo o imobiliário de "vistas para o mar". Isto para além da criminosa construção de estradas paralelas ao litoral, algumas sobre dunas e arribas. Por outro lado, há factores globais incontornáveis: o nível dos oceanos está a subir.

Como somatório de todos estes problemas, temos a erosão a crescer. À escala de uma escassa dezena de anos é perfeitamente possível verificar o efeito de recuo da linha de costa em muito sítios.

O papel do Estado português será apenas o assistir de mãos atadas ao eterno desordenamento territorial que é a litoralização do nosso urbanismo?

Desde os velhos tempos marcelistas que esta cantiga não pára de tocar. Houve o 25 de Abril, houve a adesão à UE; ministros do Ordenamento; houve planos e contraplanos; houve o primeiro-ministro António Guterres a declarar, quando tomou posse em 95, que "o litoral é uma prioridade"e que turismo de massas para Tróia "nem pensar". E, contudo - como se de um exército implacável se tratasse, tudo arrasando à sua passagem -, prédios e prédios não param de nascer, uns em cima dos outros, sobre o litoral português.

Basta passar em revista aquilo que actualmente está pedido para ainda se fazer nas nossas costas, apesar do recuo a que a linha dos 500 metros dos Planos de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) tentou obrigar.. De Norte para Sul, destaquem-se alguns exemplos mais gritantes. O Forte do Cão para onde se prevê uma mancha urbana na Mata Nacional da Gelfa, uma área notável para a conservação da natureza e que deveria integrar o tão necessário "Parque Litoral do Norte". Depois Aveiro, onde um projecto megalómano situado na área portuária irá certamente obrigar a novas obras costeiras para evitar inundações. Em Peniche, a Câmara insiste em implantar a marina exactamente por cima da zona dunar mais sensível e bonita. Mais abaixo, em zonas de alto risco como S. Martinho do Porto, Torres Vedras, Mafra, Ericeira, há quem se esforce por não deixar nem um milímetro de costa livre. Há também o célebre caso do Abano, em pleno Parque Natural de Sintra-Cascais, exemplo extremo da subjugação do interesse público pela força dos interesses privados. Para mais, durante a gestão do actual vice-presidente do ICN, então director do Parque, possibilitou-se à empresa Marinha-Guia um alargamento de mais oito hectares da já elevada área de construção inicialmente prevista no Plano de Ordenamento daquela área protegida.

E por aí abaixo: as incógnitas que rodeiam ainda a Costa da Caparica e aquelas que já não rodeiam o pesado projecto da Torralta na sensível restinga. E, claro, o eterno problema chamado Algarve - com os projectos gigantescos da Ria do Alvor, da Meia Praia, de Albufeira, virando-se agora as intenções e apetites para a zona mais bem preservada - a própria Ria Formosa.

Mas o que é que falha nisto tudo??

Já se sabe que há dispersão de competências e que abunda o caos institucional; que, apesar do Ministério do Ambiente ter assumido a gestão do litoral em 93, não só não foi criado nenhum serviço específico para isso, como uma parte crucial da zona costeira continuou entregue à ex-Direcção-Geral dos Portos, à sua política autista de obras pesadas e ao negócio da extracção de areias. O INAG, que tem formalmente o poder administrativo sobre o litoral, dispõe da módica quantia de três técnicos para gerir toda a costa...

Já se sabe também que as tropelias do quadro legislativo fazem reinar a confusão, não definindo sequer claramente que planos se sobrepõem a quais.

Perante a bagunça institucional, e a confusão legal, o factor decisivo para salvar o litoral é apenas um e chama-se vontade política

O primeiro passo já foi dado. O eng. Sócrates veio afirmar publicamente que o direito constitucional ao ambiente não é apenas um enfiamento de letras do artigo 9º no meio da Constituição. Fê-lo justamente em defesa da situação precária do litoral no caso do Meco. Espera-se que algo tenha mudado no crime lento com que se tem vitimado ao mesmo tempo o litoral e os dinheiros públicos.

O litoral não é contudo uma questão exclusiva do Ministério do Ambiente; é uma questão urgente do Estado e é um dever de soberania. Em tempos remotos, um engenheiro chamado Guterres dizia que o litoral seria prioritário para a governação. Corria então o início do mandato. Hoje, quase a meio do segundo, a situação das costas portuguesas não pode deixar de inflectir... É que elas podem ser largas, mas não são de confiança. Nem ilimitadas...

Declare-se o litoral como zona de calamidade pública; crie-se um "Alto Comissariado para o Litoral"; mudem-se as leis; alterem-se as responsabilidades; planeie-se o recuo das áreas mais afectadas pela erosão e inclua-se uma cláusula obrigatória nos novos licenciamentos que comprometa o promotor imobiliário a responsabilizar-se pelos futuros trabalho de sustentação da costa... Revejam-se os Planos; acabe-se com a tóxica-dependência financeira das autarquias face ao sector imobiliário; resolvam-se os famigerados direitos adquiridos... Faça-se uma moratória sobre todos os projectos metidos e intrometidos para as faixas costeiras de alto risco...

Mas, de uma vez por todas, liberte-se os contribuintes desta chantagem inaceitável pela qual os portugueses perdem ao mesmo tempo o valor ambiental do seu próprio litoral e o dinheiro que pagam em impostos aos Estado.

Porque, na realidade, os cidadãos é que pagam. Pagam a fortuna louca que é fabricar artificialmente um litoral firme quando ele naturalmente não o é. O resultado é o que se pode literalmente dizer: deitar dinheiro por água abaixo.

É por isso que chegou a altura de dizer: Basta! Não pagamos!!

http://www.expresso.pt/ed1423/r0761.asp?ls