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Parques desnaturados

Por Luísa Schmidt
9 de Novembro de 2002 - in Expresso Revista

As áreas protegidas vivem tempos difíceis. Depois de anos de desleixo e de pilhagem, surge uma lei absurda que vem agravar o já de si frouxo funcionamento deste património natural único e ameaçado de extinção.

Por toda a parte - e não só no chamado mundo civilizado - as áreas protegidas constituem uma das principais redes do futuro ambiental.

Entre nós, juntamente com a Rede Natura e a Reserva Ecológica Nacional, a Rede das Áreas Protegidas é o tecido de salvaguarda e de suporte daquela que é já hoje reconhecida como uma preciosidade nacional.

Ora, por incrível que pareça, num país com as potencialidades ambientais que este tinha, e generosamente regado por subsídios comunitários nos últimos 20 anos, o ponto de situação das nossas Áreas Protegidas é lastimável. Pilhadas pelas supostas "elites" sociais e políticas, e desleixadas por uma população que tarda a ultrapassar a sua iliteracia ambiental, as áreas vivem como uma esquadra mal armada cercada por "gangs". O risco permanente em que se encontram é enorme, e qualquer passo em falso é-lhes fatal.

Esse passo pode estar dado.

Um novo e absurdo decreto-lei (DL 221/2002), em termos práticos, vem criar uma tal embrulhada na gestão das áreas, que o resultado vai ser um autobloqueio sistemático, que só agravará a política do facto consumado. Tudo sob a égide das autarquias, cujas dinâmicas estão longe de ser constantes, e por isso fiáveis, nesta matéria.

Vejamos com mais cuidado a brilhante emenda que se arranjou para o velho soneto.

Primeiro, os directores de área passam a ser nomeados, e não empossados por concurso. Faca de dois gumes a cortar bem nalguns casos de carisma e dedicação; mas a ferir, se se tratar de mandaretes políticos de interesses instalados. Seja como for, o restante sistema de gestão é tão embrulhado que, com carisma ou sem ele, o director tenderá a fazer o papel de estante: apenas o de lá estar.

A Comissão Directiva - composta pelo director e dois vogais - fica sujeita ao escrutínio das autarquias para ser eleita, segundo um grotesco sistema de duas voltas: o Ministério do Ambiente propõe uma direcção; se as autarquias estiverem de acordo, ela é logo nomeada; se não gostarem da proposta, o Ministério do Ambiente nomeia outra, mas agora obrigatória. Se gostares da sopa, comes; se não gostares, comes na mesma...

Não se podia ter encontrado sistema mais perverso de complicar uma nomeação. Na prática, o que acabará por acontecer é que qualquer Comissão Directiva só será operacional se a proposta do Ministério do Ambiente for sempre da preferência dos autarcas, seja à primeira, seja à segunda volta. Até porque, esta Comissão ficará nas mãos de um Conselho Consultivo onde as autarquias voltam a ter um peso decisivo.

Este terá um presidente nomeado pelos autarcas, incluirá cientistas e representantes das ONG, além de delegados das autarquias e das Juntas de Freguesia. Já estamos a ver o desequilíbrio nos pratos da balança, o que é tanto mais grave quanto este Conselho Consultivo emitirá pareceres vinculativos. E aqui cria-se outro berbicacho: o puro e simples entupimento burocrático permanente.

À média de 300 a 1000 pedidos por ano nalgumas áreas protegidas, quando as decisões vinculativas começarem a ter de ser proteladas de reunião para reunião e quando já não houver agenda que suporte a chuva de contestações, reapreciações, alterações, recursos... - isto para só falar do que se passa por cima da mesa - o resultado vai ser o velho sistema "C" do Costume. Primeiro faz-se a obra, e depois logo se vê.

De factos consumados está o desordenamento do nosso território cheio. E as áreas protegidas também...

Tudo isto aponta para um projecto absolutamente insensato de fazer deslizar progressivamente todo o eixo de autoridade das Áreas Protegidas para a esfera autárquica.

O actual DL consegue assim a notável pirueta de, ao mesmo tempo, consagrar o excelente princípio da participação com o da delapidação. Todas as forças vivas participam, o que é bom. Mas o sistema de participação faz dele um saco de gatos. O resultado custará a delapidação do património público que são as áreas protegidas.

Veja-se um caso como o do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina para experimentar a ideia peregrina desta lei.

Como tem funcionado o Parque? De mal a pior.

Dispondo de três técnicos para toda a zona entre Odeceixe e Burgau, outros três até Sines, estes seis técnicos desdobram-se pelos 74 mil ha do Parque, mais 50 mil ha de Rede Natura, e dedicam-se hoje quase só à acelerada apreciação dos inúmeros projectos diários que lá entram.

O Parque não tem orçamento, não tem dinheiro, não tem carros, não tem quaisquer meios para dar seguimento a alguns projectos de investigação e desenvolvimento que iniciou, mesmo com a dedicação de todos os seus técnicos. O Parque tem vagamente um director sem estratégia, e vive em guerra com os poderes locais - que muito gostam de enfiar a pele do lobo aos serviços do Parque, enquanto eles passam pelos "cordeiros" amigos do povo...

O que se pode esperar que aconteça? Aquilo que está a acontecer: a fuga acelerada dos técnicos a este poço de frustrações (só este ano foram seis), e a ideia de Área Protegida cada vez mais longe da consciência dos seus cidadãos, habitantes e visitantes. Não fossem umas placas de lata no meio dos entulhos despejados para as bermas e ninguém acreditaria que era ali a "área protegida".

O litoral do Parque encontra-se em acelerada erosão, mas o número, envergadura e natureza das pretensões urbanísticas trepa em espiral - só na zona do Algarve, entre Aljezur e Vila do Bispo, contam-se cerca de 16 mil camas. E o crescimento da zona portuária e industrial de Sines fará aumentar em muito a pressão urbanística em toda aquela área.

A confusão é tanta que existem vários projectos chumbados pelo Parque, e portanto ilegais à luz do seu Plano de Ordenamento, mas que têm alvarás de construção na mão concedidos pelas câmaras, e até licenças para fossas sépticas passadas pela Direcção Regional do Ambiente (DRAOT) do Algarve. Há empreendimentos que avançam sobranceira e ilegalmente - como o Ecotual, Espartal e Vale da Telha... Neste último caso chegou a haver um estudo de reconversão encomendado pelo ICN, entretanto engavetado, e agora desperdiçado, pois a DRAOT Algarve pretende avançar com outro.

Todos os projectos propõem índices de construção e densidades habitacionais muito superiores ao que o Parque permite, e muitos são empreendimentos concebidos nos anos 70, daqueles que ciclicamente aplicam a velha técnica de atirar o barro à parede. Pode ser que cole, e por vezes assim é...

Outros, depois do parecer negativo dos técnicos, aparecem com compromissos de viabilização por "documento de consenso", como aconteceu com a Vila Formosa, mesmo antes de Carlos Guerra sair.

No meio destas guerras, enquanto os promotores mais poderosos conseguem ver os seus projectos aprovados em dias, muitos residentes locais vêem-se em palpos de aranha para ampliar um quarto ou dois na sua casa permanente habitual, sentindo-se vítimas de uma iniquidade de critérios que instalou um estado de revolta e descrédito na administração do Parque. E os técnicos são os primeiros a pagar as favas, fazendo papel da bola a que toda a gente dá chutos e pontapés. Sejam os mais poderosos que rematam para o lado (e conseguem sempre mexer as alavancas dos poderes). Sejam os populares que os driblam e fazem a caça à multa...

Consequências? Quando se desce ao terreno todos estão zangados com todos - cidadãos, técnicos, autarcas...

Razões? Ao poder nunca interessou uma gestão sustentável. Nunca houve educação ambiental, nunca se explicou com clareza a todos os agentes do terreno - câmaras, empreiteiros, regantes, agricultores, etc. - a importância do Parque. Em suma, não se explicou que se cada um fizer o que entender, o Parque deixa de ser a área protegida que é, e ficará um lugar turístico igual a muitos outros - com mais-valias para poucos e sem valia para o país...

É a falta abissal de formação a este nível que torna a realidade do Parque uma espécie de novela trágico-cómica. Sem meios técnicos e financeiros, o Parque não age. O Parque não estuda, portanto não conhece. O Parque não dinamiza projectos, portanto distancia-se das populações, e não as mobiliza no seu próprio interesse colectivo. O Parque não educa, portanto não cria futuro e até o hipoteca. Meia dúzia de livritos lustrosos, uns desdobráveis, porta-chaves e esferográficas são manifestamente pouco como ideia pedagógica para uma direcção que se arrasta há sete anos nesta indigência.

Responsáveis? As mais altas instâncias do Estado que mantêm intencionalmente nebulosas as regras do Parque e respectiva divulgação. E o mais grave é que as chefias vivem em conluio com esta situação em vez de a denunciarem e pedirem a demissão de toda a hierarquia do ministério - a começar pelo presidente do ICN e a acabar no ministro responsável.

Tal como está, o Parque não pode continuar. Mas entre corrigir os erros da actual situação e passar-lhe um atestado de óbito vai toda a diferença.

É inaceitável. Agora que a pobreza voltou a ser de novo a condição real do país, as áreas protegidas eram pelo menos uma esperança e um património. Em vez de se fazer delas um desígnio colectivo nacional, entregam-se a uma trapalhada burocrática que, de tropeção em tropeção, as arruinará.

Já não bastava algumas delas terem ficado temporariamente "desclassificadas" por falta de planos de ordenamento, vem agora esta lei que Jorge Sampaio promulgou, talvez por distracção...

O Sudoeste Alentejano - cujo plano de ordenamento está em revisão - será um belíssimo laboratório. Para aquilo que bem gostaríamos não acontecesse nunca em Portugal? Ou para ensaiar finalmente uma gestão sustentável? Para já, está tudo nas mãos de Isaltino de Morais.

Para saber mais

O Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina corre sérios riscos. As pretensões urbanísticas trepam em espiral (quase 20 mil camas). As pressões políticas são enormes. E a confusão impera: há projectos chumbados pelos serviços do Parque,mas com alvarás camarários; há projectos ilegais em construção; os índices de urbanização propostos são muito superiores aos que o Plano de Ordenamento do Parque possibilita.

Identificámos uma dúzia:

1. Aivados - Loteamento urbano para 800 camas, situado na Ribeira da Azenha, perto da Praia do Malhão.

2. Vila Formosa - Loteamento urbano e hotel rural para 1600 habitantes, campo de golfe, heliporto e ancoradouro, em pleno estuário do Mira, numa zona de protecção total e parcial. Conseguiu um documento de consenso em 2002.

3. Algoceira - Urbanização com 2000 camas e campo de golfe, em Rede Natura, junto a um afluente do Mira.

4. Vila Rosalinda - Urbanização para 2800 habitantes (o Plano do Parque possibilita cerca de 240), junto do Rogil, com alvará caducado.

5. Espartal - Urbanização para 1250 habitantes (o Parque possibilita 240), perto da Praia de Monte Clérigo a escassas dezenas de metros das arribas. Avança em situação ilegal.

6. Vale da Telha - Urbanização para mais de 10.000 habitantes (o Parque possibilita 3500 num estudo de reconversão que mandou elaborar, mas foi engavetado). Entre Monte Clérigo e Arrifana, parte em cima de dunas fósseis, parte em Rede Natura, sem saneamento básico. Avança em situação ilegal.

7. Herdade da Sinceira, em Vila do Bispo - Urbanização para 800 habitantes e construção de dois campos de golfe, em sítio de Rede Natura 2000 (Sítio nº59 - Costa Sudoeste).

8. Esparregueiras - Urbanização e bloco de apartamentos para 1200 habitantes (o Parque possibilita 110), na Reserva Biogenética de Sagres.

9. Ecomave - Urbanização para 400 habitantes (o Parque possibilita 60), à entrada de Sagres. Arruamentos já construídos e respectiva iluminação.

10. Martinhal - Urbanização para 650 habitantes (o Parque possibilita 200), junto de arribas, linhas de água e de uma zona húmida. Avança em situação ilegal.

11. Ecotual - Urbanização para 600 habitantes (o Parque possibilita 260) e um porto de recreio, na praia Boca do Rio, junto de uma zona húmida (Paul de Budens). Iniciou as infra-estruturas em situação ilegal.

12. Caminho do Infante - Urbanização para 2000 habitantes (o Parque possibilita 190), perto do Burgau, EN 125. Avança em situação ilegal.

FONTE: ALMARGEM - ASSOCIAÇÃO DE DEFESA DO PATRIMÓNIO AMBIENTAL E CULTURA