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Quando evocamos a presença árabe no Gharb Al Andalus, surgem-nos imagens de princesas mouras, enamoradas por cavaleiros cristãos; de sábios astrónomos em frescos jardins; ou do al-mu'adhdhin chamando para a oração. Recentes escavações perto da Carrapateira, no sítio designado Ponta do Castelo, mostram-nos uma faceta mais prosaica dos habitantes do sul, durante o período islâmico: uma povoação de pescadores, provavelmente sazonal, onde a pesca da baleia desempenharia papel importante.
Localizado num esporão da alta arriba da Costa Vicentina, quase perpendicular ao mar, o sítio arqueológico foi alvo de escavações por parte de uma equipa de investigadores da Universidade Nova de Lisboa, coordenada por Rosa Varela Gomes e que integrou ainda Vera Teixeira e Maria João Miranda. A primeira campanha, que decorreu no Verão de 2001, permitiu a recolha de fragmentos de cerâmica muçulmana, pregos, fragmentos de anzóis de ferro e um osso de baleia, utilizado, possivelmente, como banco. Permitiu ainda datar o povoado: séculos XII e XIII; ou seja, do período Almoáda, o último da ocupação muçulmamo do Algarve.
"Foram detectadas, até ao momento, parte de duas vias, a partir das quais era possível, através de passagens estreitas, ter acesso às sete estruturas habitacionais reconhecidas. Estas mostram planta rectangular, encontrando-se muito destruídas. Uma delas (...) media 3,80 m de comprimento por 2 de largura, e apresentava-se melhor conservado. Aqueles espaços habitacionais eram edificados em taipa, sobre enrocamentos de pedra, possuindo cobertura constituída por materiais perecíveis, visto não termos exumado fragmentos de telhas ou de qualquer outro material que pudesse ter sido utilizado para aquele fim." ("Povoado Muçulmano na Ponta do Castelo (Aljezur), Notícia Preliminar ", in Al-madan nº 10, pp 200-201, Dezembro 2001)
"A localização das estruturas habitacionais, em alta arriba sobranceira ao mar, as suas dimensões, assim como os espólios exumados, indicam terem formado pequeno povoado, provavelmente sazonal, dedicado à exploração dos recursos marinhos. Trata-se de subsistência complementada, consoante as estações do ano, com a agricultura, conduzindo a economia agro-marítima" (idem) . Segundo as investigadoras, "a pesca e a recolecção de mariscos constituiriam não só a principal fonte alimentar dos residentes neste povoado mas o peixe, depois de salgado e seco, poderia entrar nos circuitos comerciais, servindo como moeda de troca com diferentes produtos de outras regiões do interior, nomeadamente cereais."
No início, pensava-se que na Ponta do Castelo, dada a sua localização geográfica (um local com grande visibilidade da costa), tivesse existido uma torre de atalaia, que se integraria no sistema defensivo da zona. Contudo, as escavações vieram afastar essa hipótese.
"A localização deste assentamento, em promontório, sugere, dadas as más condições habitacionais que proporcionaria, devido aos fortes ventos que se fazem sentir quase todo o ano acompanhados por grande humidade, a função de observatório do mar, talvez tendo em vista a baleação" (idem).
A hipótese de baleação fundamenta-se no achado, numa das habitações, de um osso de baleia com cerca de meio metro de comprimento, provavelmente resultante da pesca àqueles cetáceos, que se praticou nesta zona de costa até à idade Média. Existem ainda, na Carrapateira, casas com bancos feitos a partir de ossos de baleia. Esta caça ainda é expressamente referida no foral de Aljezur (1280), e cuja posse D. Dinis reservava para si, já a ocupação muçulmana pertencia ao passado: "Item retineo mihi et omnibus suçessoribus ius patronatus omnis ecclesiarum de Aliazul et de terminis suis constructarum et construendarum et ballenacionem...". Contudo, alguns autores salientam que a importância deste tipo de actividade na Costa Vicentina seria muito relativa, já que não se conhecem ali grandes instalações de tratamento dos cetáceos após captura, ao contrário do que se regista na costa sul algarvia (salinas, zona de secagem , etc).
Independentemente da sua dimensão, "o povoado da Ponta do Castelo é o primeiro assentamento de pescadores do período muçulmano a ser investigado a nível nacional, aguardando-se que o estudo dos testemunhos descobertos constitua contributo para o conhecimento da vida daquelas comunidades, como herança cultural por elas legada" (idem).
O povoado da Ponta do Castelo dá-nos uma outra perspectiva da ocupação árabe da Costa Vicentina. Diminui o exotismo imaginário, quando observamos, nos nossos dias, o pequeno portinho de pesca artesanal da Carrapateira, a apanha e secagem das algas vermelhas nas arribas próximas da Ponta do Castelo, a relação dupla das populações com a terra e com o mar. Afinal, os "mouros-pescadores" da Carrapateira são nossos antepassados.
Créditos e links:
Gomes, Rosa Varela; Teixeira, Vera; Miranda, Maria João,"Povoado Muçulmano na Ponta do Castelo (Aljezur), Notícia Preliminar ", in Al-madan nº 10, pp 200-201, Dezembro 2001
Sobre a cerâmica Almoáda: www.arqueotavira.com/Estudos/Talha.pdf
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